domingo, 7 de junho de 2020

[Conteúdo Exclusivo de Plataformas Gratuitas] Crowley - Universo Expandido: A Longa Viagem de Volta - Primeira história, primeiro arco


1ª Parte: Shion

Novamente em Colônia do Sacramento, sinto como se tivesse deixado em um velho sótão uma antiga casa de bonecas.

            Pois as calçadas de pedra antiga, as casas coloniais, os barcos no porto, a praia de areias brancas, as pessoas conversando, as crianças correndo e tudo que aqui vi na infância continuam exatamente como me lembro. Com exceção do resto do mundo e de mim.

            O Muro de Berlim caiu, pelas mãos dos alemães já cansados de divisão, enquanto o avião me levava de volta ao antigo epicentro do meu mundo. A União Soviética agoniza em sua própria podridão moral e política. Uma ditadura militar ainda está em voga no Chile enquanto eu caminho pelas calmas ruas de pedra me perguntando se existem mesmo mais coisas entre o céu e a terra do que diz nossa vã filosofia.

            Eu, sendo uma pessoa da ciência, não costumava acreditar. Pelo menos não até me ver pegando um voo para Montevidéu, que antes fez duas escalas, uma em Nova York e outra no Chile. Pois me veio a lembrança de um Festival de Verão, em Osaka, quando entrei na barraca de uma cartomante, que atentamente me olhou após embaralhar as cartas de tarô, dividi-las em pequenos grupos e me fazer escolher um deles...

            Seu destino não está aqui, Shion. Está no outro extremo do mar. Você só entenderá quando estiver buscando aquilo que realmente procura.

            Como ela sabia meu nome, até hoje não sei explicar. O fato é que... apenas eu a vi. Todos os presentes naquele dia juram nunca ter visto uma barraca ou uma cartomante.

Desde então, achei melhor esquecer esse fato, especialmente pela insistência dos meus pais em não permitirem as línguas alheias me tacharem de louca. Porém, nunca pude olvidá-lo porque sempre me perguntei o que isso queria dizer e onde me levaria.

Mas o porquê de estar aqui eu sei, pois tomei a decisão de voltar à Colônia do Sacramento quando as limitações da sociedade japonesa se tornaram sufocantes demais para mim. Nunca foi uma possibilidade me limitar, principalmente porque ainda há muito da mente humana, minha área favorita, para ser estudada.

Razão pela qual decidi buscar meus objetos de estudo para o doutorado na América Latina, pois há uma riquíssima história aqui e muitas figuras dignas de estudos mais profundos de suas mentalidades, pois acredito ser ela a responsável pelos grandes fatos históricos. Quem sabe se existir um estudo maior em cima disso, talvez seja possível construir um mundo melhor desde agora.

No entanto, tenho a consciência de uma coisa: a mudança causa medo. O que leva à ignorância, cuja evolução é o ódio. Infelizmente, nem todas as pessoas entendem a importância de ter as próprias escolhas e viver por si mesmas. São como pássaros criados presos, acham que voar é uma doença perigosa e querem cortar asas alheias. Apenas abrindo-as, e orientando os voos, é possível romper o vicioso ciclo de desgraça que permeia o mundo.

Penso nisso e em mais quando de repente sinto as pernas vacilando, pois não dormi uma hora sequer desde o começo da viagem. Sem contar as malas pesadas que carrego. Duas de oito contendo roupas, alguns objetos de higiene e um terço dos meus materiais de estudo. As outras ainda virão para a cidade, pois pedi a transferência do resto das minhas coisas pessoais. Os fusos horários são totalmente opostos e isso me prejudica de forma considerável. Já tenho a certeza de um bom número de dias de insônia e cansaço, razão pela qual preciso encontrar um hotel o quanto antes ou acabarei desmaiada no meio da rua.

É quando levo um susto. Uma voz masculina literalmente atrás de mim...

— Está procurando algum lugar, senhorita?

— Um hotel, senhor...? — olho surpresa a viatura policial ali parada sem som algum e um simpático senhor de bigode e um pouco gordo.

Inspetor Augusto Franco, señorita. Usted eres...? — ele sorri simpático, mas posso ver a tristeza permeando seu olhar. Tanto tempo analisando a mentalidade das pessoas e suas formas de se expressar me dão essa constatação.

Me llamo Shion Tachibana. Acabei de chegar. Ou melhor dizendo, voltar — respondo educadamente.

— Mesmo? Usted no parece ser de aquí — ele me diz surpreso e eu logo replico...

— Nasci aqui, mas fui para o Japão ainda criança. Na verdade, meu pai... voltou e nos levou com ele. Ele era de uma multinacional com sede na capital uruguaia.

— Espere. O seu pai por acaso não se chamava Takeshi Tachibana? — o policial pergunta me observando com cuidado. Acredito que reconheça em mim os olhos do meu pai, pois todos dizem ser esse o meu único traço herdado dele, pois minha aparência, no geral, remete à família de minha mãe.

— Sim, era... o nome dele — digo e uma sensação de profunda tristeza permeia meus pensamentos. Papai morreu quando eu tinha quinze anos, mas sempre parece ter sido ontem sua partida. Não há um dia no qual eu não pense naquela colisão de automóveis na autoestrada.

Díos mio, ya eres uma mujer, Shion! Não acredito que voltou! Pelo menos uma boa notícia no meio de tantas tragédias! — ele me abraça tão forte que quase quebra várias costelas minhas. Mas retribuo, pois é maravilhoso ver rostos familiares, e pergunto, lembrando de um adorável menino com quem eu costumava brincar, o filho dele:

Como está Jorge? Eu imagino que ele já deve ser um belo rapaz.

Ele me solta com delicadeza e a tristeza enfim se revela: — Infelizmente ele não está nada bem. Sendo sincero, eu não sei se... ele vai sobreviver. Temo que... ele acabe se matando.

— Como assim?! — pergunto horrorizada, pois não posso imaginar que um menino tão alegre e inocente tenha crescido e se tornado tão depressivo a esse nível.

— É uma longa e deprimente história, mas não estou pronto para falar acerca dela ainda. Até porque não a quero triste logo em sua chegada — responde ele a um passo de chorar. Minha experiência com esse tipo de situação me faz achar melhor não tocar no assunto até achar um melhor momento para isso.

— Já fiquei triste de ouvir, mas... entendo se não quiser falar. Eu sei como é passar por isso e já atendi vários pacientes com situações parecidas.

— Você é... psiquiatra? — Franco pergunta com espanto enquanto me observa com a típica expressão de quem parece não acreditar no que escuta, motivo pelo qual replico...

— Inspetor, os psiquiatras receitam remédios. Sou psicóloga, além de terapeuta. Eu... converso com os pacientes sobre os problemas deles. Tento auxiliá-los a encontrar um caminho certo. Mas, sei o quanto é necessário ter cuidado com isso porque nem todos conseguem ter uma mente forte o suficiente para seguir em frente sozinhos e muitos colegas meus se aproveitam dessa fraqueza.

— Infelizmente há gente covarde em todas as instâncias. Na política então, nem gosto de mencionar — diz ele com desgosto. Sua reação em nada me surpreende. A ditadura militar ainda existe no Chile e me causa grande amargura, pois me dói o coração saber que tantos pagaram, e talvez ainda paguem, um preço alto somente por quererem a liberdade para se expressar e viver...

— Eu o entendo, inspetor. Também me desgosta isso. Como ser humano, com os princípios que me foram ensinados, não é possível para mim aceitar semelhante coisa.

— Nem todos os humanos são realmente seres humanos. Às vezes, Adrian Crowley parece um santo comparado com alguns dos militares que conheci — diz ele com ar cansado, mas se auto repreende ao ouvir suas próprias palavras e depois diz como se pedisse desculpas pelo comportamento impulsivo: — O que estou dizendo, meu Deus?! Esqueça o que eu falei, Shion. Vamos para minha casa. Eu tenho um quarto vago, meio desarrumado no momento, mas acho que pelo menos hoje você pode dormir nele sem se preocupar. Prometo... arrumá-lo para você.

Eu já tinha ouvido aquele nome, quando criança, mas nunca me aprofundei com relação a isso, considerando que mitos e lendas não costumam ser parte essencial do ensino de História na escola. No entanto, algo na maneira de falar logo me disse que esse lhe era um assunto doloroso, mas eu não entendia o porquê. Achei melhor, naquele minuto, contudo, não pesar mais ainda o clima fazendo perguntas invasivas. Minha paciência era suficiente para esperar o momento certo de fazê-las.

Uma hora ou outra, entretanto, eu as faria. No momento, porém, estava mais preocupada em descansar, agora com mais tranquilidade por ser em um local conhecido, para no dia seguinte, continuar a minha longa viagem de volta a uma parte das minhas raízes.

Sobre Renata Cezimbra

Brasileira e gaúcha com os dois pés e muita imaginação na região do Prata, pois é lá que começa o universo dos Vampiros Portenhos. Onde convergem os vórtices das mais férteis referências de uma dama teimosa, que aprecia pitadas de cultura pop, referências underground e coisas do arco da velha.

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16 comentários:

  1. Gosto muito de acompanhar seu blog, até tenho ele salvo aqui. Você sempre trás contos e textos diversificado sobre vampiros, o que é curioso. Gostei do texto postado hoje.. A história começou com uma ótima narrativa e bons diálogos!!!
    Quero acompanhar mais

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  2. Oi Renata.

    Achei o conteúdo exclusivo que você deixou na postagem bem interessante. Espero continuar acompanhando mais conteúdos como esse. Parabéns.

    Bjos

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  3. Olá!

    Muito boa a narrativa! Gosto de histórias que trazem ensinamentos históricos no meio de uma história fictícia, porque assim sempre acabamos aprendendo alguma coisa durante a leitura. Acho o mesmo em relação a mesclar outros idiomas no decorrer da história. Sem notar, o leitor acaba aprendendo algumas palavras novas e isso torna a experiência mais rica.
    Espero continuar acompanhando a história!

    Beijos.

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  4. Oi Renata!

    Achei muito legal esse trecho que você trouxe nesse post!! Ele tem uma pegada de mistério que deixa a agente muito interessado, fiquei curioso para descobrir quem é Adrian Crowley.

    Beijos!
    Eita Já Li

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  5. Oii Renata

    Eu gosto da maneira como vc vai narrando a trama, prende a gente e instiga a querer ler mais. Obrigada pelo trecho postado.

    Beijos, Ivy

    www.derepentenoultimolivro.com

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  6. Olá, tudo bem? Uau, achei incrível e bem interessante este conteúdo exclusivo. Ansiosa para continuar acompanhando a história!

    Beijos,
    Duas Livreiras

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  7. Oii!!

    Eu acho lindo quem tem o dom da escrita, pq só pode ser dom conseguir escrever algo tão bacana e envolvente! Gostei de ter a oportunidade de conhecer o inicio da história de Shion... Parabéns!!!

    Beijinhos,
    Ani
    www.entrechocolatesemusicas.com.br

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  8. Oi Renata, como vai? Eu sou uma negação para histórias com vampiros e outros seres mágicos, eles nunca me deixam completamente pressa a história até o final mas, achei muito interessante o seu conteúdo exclusivo, principalmente pelos fatos históricos que você colocou nele.
    Fico feliz que esteja conseguindo escrever no meio dessa pandemia louca, porque nem sempre a gente consegue mante um hobby tão lindo o da escrita, nesses momentos de loucura que estamos vivendo.

    Viviane Almeida
    Resenhas da Viviane

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  9. Olá, tudo bem? Interessante o conteúdo hein?! Achei positivo essa questão de exclusivo pois a pessoa vai procurar no local certo. Adorei conhecer um pouco mais sobre, e já quero mais haha
    Beijos

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  10. Eu não sou muito íntima de vampiros, mas gostei deste trecho aqui e vou passar a acompanhar o blog pra não eprder mais nada.
    Beijos

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  11. Oi, tudo bem?
    Apesar de não ser muito fã de histórias com vampiros, achei esse trecho que você postou bem instigante. Os diálogos bem construídos e a escrita muito envolvente. Vou continuar acompanhando.
    Beijos!

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  12. Oi, Renata! Gostei muito do seu texto, você escreve bem, e esse trecho exclusivo foi muito legal de se ler! Parabéns!
    Bjs
    Lucy - Por essas páginas

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  13. Eu sempre gosto de vir ao seu blog e me deparar com um texto seu, no meio dessa pandemia os autores estão ajudando muito os leitores quando nos permitem ler suas obras. Adorei!!

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  14. Eu adorei essa ideia de trazer um conteúdo exclusivo daqui! Não sou muito fã de histórias com vampiros, mas sua escrita é muito boa e espero poder acompanhar os demais!

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  15. Que belo conteúdo exclusivo você nos trouxe, gostei demais do que li e já estou ansioso a espera da continuação.

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  16. Gostei muito do texto, vc escreve muito bem. Ao terminar de ler o texto fiquei querendo mais, agora com o final da faculdade vou tentar visitar com mais frequência e ler mais coisas sua.

    bjs
    https://quemevcbrubs.blogspot.com/

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